Prefácio
Sendo uma figura importante nos meios da arte contemporânea chinesa, Fang Lijun ganhou fama internacional com as suas icónicas “figuras carecas”. Ao longo do seu percurso criativo, o artista não só se tem vindo a dedicar profundamente à sua arte, como também se tem constantemente envolvido num variado leque de disciplinas.
Tomando como exemplo Fang Lijun: A Luz Poeirenta, organizada pelo Museu de Arte de Macau (MAM), a exposição abrange um total de 190 obras, desde desenhos e pinturas a óleo a xilogravuras, pinturas em cerâmica, pinturas a tinta, esculturas e até mesmo a NFT, bem como obras de múltiplas dimensões, desde o formato A4 aos 8,5 metros de comprimento, evidenciando assim a extraordinária mestria do artista no uso de diferentes expressões artísticas, dimensões e técnicas. Estas obras abarcam quatro décadas de criação, reflectindo o percurso artístico do pintor, que se desenvolve de modo vibrante, mas ordenado. Em virtude da desconstrução criativa de Fang da pintura de figuras (retratos), auto-retratos e caricaturas e da combinação ousada de meios de expressão convencionais e um traço contemporâneo, as obras revelam-se humorísticas, peculiares, contidas e, ao mesmo tempo, dramáticas. Sejam imagens de homens carecas ocos ou de grupos de pessoas com feições esquisitas, sejam representações a tinta de amigos fotografados com uma Polaroid, as obras transbordam de tensão, lembrando um labirinto repleto de espelhos e adoptando diferentes perspectivas para reflectir o enigma eterno dos “seres humanos”.
O “eu” e os “outros” são motivos importantes nas obras de Fang Lijun. Em contraste com a famosa citação do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”, Fang acredita que “uma vida passada com amigos é um paraíso”, tendo já admitido abertamente que “as pessoas são tudo para mim”. Durante o seu processo criativo, Fang esconde, por vezes, o seu verdadeiro eu por trás de uma pluralidade de “eus”, o que é, por vezes, evidente, quando sublinha certas características das figuras, usando os “outros”, na sua singularidade, como espelhos. Por outras palavras, sejam auto-retratos deformados ou pinturas de figuras fiéis à realidade, seja a “presença física espiritualmente ausente” que Fang reproduz propositadamente nas suas obras, as escolhas do artista de mostrar ou não a sua auto-imagem, ou de revelar a identidade das suas figuras, correspondem a reflexões sucessivas sobre o eu, os outros e as relações sociais.
O título A Luz Poeirenta deriva da expressão chinesa “esconder o brilho e fundir-se com a poeira”. É particularmente significativo que esta exposição centrada no “humano” seja realizada em Macau, a cidade com a maior densidade populacional do mundo e onde as relações interpessoais são estreitas. A partir das obras expostas, é-nos possível não apenas ver o “eu”, que é, por vezes, solitário e rebelde, camuflando-se entre os “outros”, os quais são de carne e osso e possuem, cada um, os seus defeitos e a sua alma, como também podemos contemplar “todos os seres” através destas obras que Fang criou nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia. Nestes tempos em que a paisagem urbana que vemos diariamente se enche de rostos que se confundem uns com os outros e em que o distanciamento social passou a ser um hábito, os rostos humanos reais e animados, há muito invisíveis por trás das máscaras de protecção facial, são algo a que conferimos um valor particular.
É essencial que os artistas se afirmem através da construção de uma linguagem visual clara sem se deixarem encapsular pela mesma. Na arte contemporânea, a “motivação” vem frequentemente em primeiro lugar, sendo os paradigmas e as rotinas, por vezes, vistos como um atalho para o sucesso, como se se estivesse a pôr a carroça à frente dos bois. Mas a “rotina” inabalavelmente consistente adoptada por Fang Lijun não se prende com a forma, centrando-se antes no ser humano, cada uma das suas obras reflecte a mesma ideia central: “como representa um ser humano os seres humanos?” A maioria das suas obras apresenta um fundo abstracto sendo a sensação de espaço transmitida apenas por representações do céu e de água. Ao esforçar-se por remover fundos figurativos e narrativas, o artista insta o espectador a concentrar-se mais nas condições de vida das figuras representadas, permitindo que o espírito de desilusão dos tempos e a inquietude colectiva se manifestem naturalmente através do modo de estar das figuras. Este é também um dos pontos fortes de Fang Lijun, contribuindo para a sua proeminência nos meios artísticos.
Segundo Fang, “a pintura consiste em retratar a alma das pessoas”. Antes de visitarem esta exposição, recomenda-se aos espectadores que deixem os rótulos como “Cultura Malandra” (ou “cultura popi”)” ou “Realismo Cínico” à porta, que se abstenham de ver a arte de Fang Lijun como um afastamento das “figuras simbólicas” e um retorno às “figuras concretas” e que se permitam deambular pelas galerias de exposições para experimentar por si próprios a sensação de estar perante almas humanas em constante transformação e sentir o indescritível “desconforto” causado pelas obras do artista.
Tomando como exemplo as pinturas a tinta de figuras humanas que Fang tem criado nos últimos anos, podemos constatar que o artista tem vindo a prestar mais atenção ao espírito e à essência inerentes às figuras do que aos seus corpos ou à composição dos quadros. Sejam idosos, amigos ou celebridades, as figuras são todas exageradas ao ponto de parecerem deformadas, mostrando várias expressões comuns a todos nós, como coçar a cabeça, franzir a testa e revirar os olhos. Estas extraordinárias figuras pintadas a tinta, variando entre ídolos ridicularizando-se a si próprios, eus cínicos e retratos humorísticos de outros, são um pouco mais suaves e mais alegres do que os que se podem ver em obras anteriores de Fang, mas transmitem ainda a sensação de “desconforto”, típica dos pesadelos, que é representativa do artista, evocando a curiosidade persistente, o sentido de alerta, as incompatibilidades, a tendência para o autocontrolo e até o desejo de ir além dos limites que experimentamos quando nos encontramos cercados por um grande grupo de pessoas. Este desassossego avassalador em relação à vida, que dura há quase meio século desde que o artista começou a aprender a pintar, é particularmente raro.
O sucesso da exposição A Luz Poeirenta deve-se ao apoio do Museu de Arte de Guangdong e do Arquivo de Arte Contemporânea da China. Como maior museu de artefactos e arte de Macau, e constituindo uma importante plataforma para a promoção da cultura e da arte sob os auspícios do Instituto Cultural, o MAM tem vindo a promover a sua abordagem humanista e a cumprir a sua missão de desenvolver a sensibilidade estética e de incentivar a meditação sobre a arte através de exposições diversificadas. O MAM continua a organizar exposições de grandes artistas contemporâneos chineses, na esperança de dar a conhecer o contexto geral e a profunda complexidade da arte contemporânea chinesa a partir de perspectivas asiáticas e internacionais.
A chamada reflexão crítica sobre o “eu” e os “outros” nada mais é do que um processo de autoconhecimento e de conhecimento dos outros, como caminho para a auto- afirmação em sociedade e para saber viver facilmente no seu seio. O “ser humano” é o tema eterno dos artistas, pois a essência mais comovente da arte começa com a vida e termina com a vida.
Un Sio San
Directora do Museu de Arte de Macau