PREFÁCIO
Yun Shouping, nativo do Distrito Wujin da Província de Jiangsu, ficou conhecido pelo cognome de Nantian, tendo sido considerado um dos “Seis Mestres do Início do Período Qing” a par dos “Quatro Wang” (Wang Shiming, Wang Jian, Wang Hui e Wang Yuanqi) e Wu Li. Em jovem, Yun experienciou incidentes traumáticos, tal como a separação da família durante tempos de guerra e o colapso da dinastia Ming. O resultado foi que mergulhou na arte da pintura, buscando refinamento estético no mundano e inovação no trabalho de pincel. Yun Shouping foi o pioneiro da Escola de Pintura de Changzhou. As suas obras dedicadas ao tema de flores recorrendo à técnica de pintura chamada mogu, foram consideradas como as melhores da sua geração. As suas pinturas de paisagem eram igualmente extraordinárias.
As técnicas “sem ossos” de Nantian, com as suas qualidades etéreas, mereceram-lhe o reconhecimento de ter sido um dos principais da escola realista ortodoxa de pintura. Algumas das pinturas de peónias nesta mostra são excelentes exemplos da sua mestria. O álbum “Paisagens, Flores e Pássaros” (1675) — criado no 14.º ano do reinado do Imperador Kangxi da dinastia Qing — assim como o álbum “Flores” (1686) — pintado no 25.º ano de Kangxi — demonstram como as representações de peónias de Nantian foram fortemente influenciadas pelo estilo único do mestre Xu Chongsi do Song do Norte. No primeiro álbum, a tinta vermelha e branca é usada intensamente para revelar o esplendor das flores sem depender deliberadamente da própria técnica; no segundo, as folhas são contornadas em densa tinta para acentuar vivamente as peónias púrpuras em toda a sua glória através da adição de matizes brancos e lilás. No álbum “Flores Primaveris” (data desconhecida), as serenas peónias brancas são construídas numa pincelada simples. No álbum “Peónias e Damascos” (data desconhecida), é usada uma combinação de contornos e matizes para ilustrar as peónias a púrpura e vermelho, assim reinstaurando a elegância das flores. O trabalho no álbum “Pinturas Diversas” (data desconhecida) é igualmente sofisticado no seu captar a criação a tinta das peónias pelos mestres Yuan, em cujas obras as pétalas são tradicionalmente representadas a tinta seca e os estames com manchas pontilhadas espontâneas para criar um efeito visual refrescante e sereno.
Em termos de teoria pictórica, Yun Shouping foi um livre pensador e visionário, sugerindo que os pintores que desejassem abraçar o realismo deveriam olhar para além das características superficiais para não correrem o risco de criar pinturas de flores demasiado rígidas. O autor defendia que não deviam prender-se a princípios e regras de modo a melhor captarem o “aspecto etéreo” do seu tema. De facto, as pinturas de pássaros-e-flores de Yun diferem muito das dos seus contemporâneos, cujos trabalhos frequentemente mostravam glamorosas manchas a vermelho e verde. Yun queria a acentuar a profundidade para além do pincel. Captava as qualidades etéreas de uma cena ou tema — as qualidades que não podem ver-se, mas sentir-se — usando enrugamentos e pequenos toques de tinta. Certa vez afirmou: “Há curvas mesmo numa concha de água e espaços vazios numa pedra”. Para Yun, os “segredos” de captar a natureza, eram “serenidade” (dan), “transcendência” (yi), “curvas” (qu) e “profundidade” (shen). O artista acentuava formas e características naturalistas e enfatizava a teoria de “assunção de sentimentos” (she qing), i.e., de que uma pintura deve evocar emoções no observador, demonstrando como o pintor poderia exprimir os seus sentimentos em pinturas capazes de representar a realidade com exactidão. Também trouxe uma nova interpretação das pinturas cortesãs de pássaros-e-flores através do estilo de pintura letrada. As suas ideias expandiram os valores estéticos e espiritualidade das pinturas de pássaros-e-flores ao longo do tempo.
Esta exposição apresenta as extraordinárias representações de Yun Shouping, incluindo flores, folhas, legumes, peixes, pássaros, ervas, algas e paisagens. O artista autoelogiava-se, dizendo que “a natureza está no meu pulso e entre os meus dedos” e “quero que o Céu tenha ciúmes de mim”. Contudo, também procurava humildemente que a natureza o ensinasse, o que está no amago conceptual da sua arte. Como afirmava, “rego as flores no meu campo do sul”, i.e., a natureza tinha-se tornado parte da sua vida e Yun plantava flores junto a vedações e escrevia poesia sobre elas. A natureza era a sua musa e, por vezes, pintava temas naturais para os poder usar como metáforas das suas ideias. Por exemplo, a sua representação de ameixas reflectia a sua fé inabalável sem necessidade de bajular os mestres antigos. Por outro lado, representar legumes e frutos lembrava-o de que os arranjos naturais ficcionais eram criados apenas para satisfazer o prazer visual. Esses arranjos também o lembravam das pessoas de Jiangnan, que haviam sofrido de seca e fome por muitos anos. Yun encorajava as pessoas a prezar a natureza, dizendo: “Se prezares o bambu, não arranques os seus rebentos a crescer no caminho e deixa-os crescer. Se gostares de pinheiros, deixa os seus ramos crescer mesmo que obstruam o caminho”. O artista valorizava a função educacional das suas pinturas de pássaros-e-flores. Na sua arte, buscava transcendência, mas também não se encontrava desfasado dos assuntos do mundo. Descobria as verdades da vida mostrando o seu cuidado por todas as coisas vivas. O seu trabalho exprime sentimentos genuínos e calorosos.
O Museu de Arte de Macau (MAM), o Museu do Palácio e o Museu de Xangai têm vindo a colaborar desde 2011, coorganizando bem-sucedidas exposições dedicadas aos “Quatro Wang” e a Wu Li. Para celebrar o 390.º aniversário do nascimento de Yun Shouping, o MAM apresenta Yun Shouping: Pinturas e Caligrafia do Museu do Palácio e do Museu de Xangai. A exposição traz a Macau mais de 182 peças nas colecções de ambos os museus, incluindo caligrafia e pintura dos “Seis Mestres do Início do Período Qing”, demonstrando a relação próxima entre os três museus. A mostra divide-se em três secções, “Obras-primas – Mestria Para Além da Natureza”, “Discípulos e Sucessores” e “Artistas Companheiros”. Juntas, estas secções mostram as icónicas obras de Yun Shouping e as notáveis peças criadas por membros da sua família, discípulos e amigos. A extraordinária arte de Yun, assim como a sua personalidade carismática, são visíveis aqui e a exposição sublinha também o significado epocal do seu legado e inovação. A par da exposição terá lugar um simpósio que examina exaustivamente a profunda influência das obras de Yun em mestres como Ju Chao e Ju Lian, artistas que estabeleceram a Escola de Pintura de Lingnan herdando e desenvolvendo as técnicas de pinturas “sem ossos” de Yun Shouping ao inventar as técnicas de “infusão de água” (zhuang shui fa) e “infusão de pó” (zhuang fen fa), que viriam ambas a influenciar o próprio desenvolvimento dos círculos de pintura de Macau.
Com os seus esforços, Yun Shouping trouxe uma lufada de ar fresco aos círculos pictóricos de pássaros-e-flores excessivamente mundanos da dinastia Qing. Deixou às gerações futuras, para apreciação e aprendizagem, técnicas artísticas profundas e obras de grande relevância estética. As suas pequenas cenas de flores e ervas contêm vastos universos de ideias, sentimentos e técnica. Para além disso, as inscrições poéticas que acompanham as suas pinturas — escritas no notável estilo caligráfico chamado “estilo de Yun” — são igualmente impressionantes. Aqui, podemos admirar uma combinação da sua poesia, caligrafia e pinturas, designadas como as “três perfeições de Nantian”. Estes encantadores tesouros permitem aos observadores esquecer tranquilamente questões mundanas e desenvolver a sua própria conexão espiritual com as imagens. Ao contemplar estas obras, podemos imaginar que caminhamos ao longo de vedações ou de veredas na floresta profunda, explorando a sabedoria que contêm. Como disse o filósofo Zhuangzi: “Céu, Terra e eu nascemos juntos e todas as coisas e eu somos um”.
Nantian afirmou certa vez que “a natureza está comigo”. Vivemos agora numa era em que a inteligência artificial consegue criar imagens de minucioso pormenor e os dados são gerados automaticamente. Contudo, há mais de 300 anos, Yun Shouping observava e criava múltiplas imagens com a ponta do pincel. Compreendia a sabedoria de “ver o mundo numa flor”, oferecendo nos serenidade na beleza imorredoura das suas obras e revelando-nos a importância de viver em harmonia com a natureza.
Un Sio San
Directora do Museu de Arte de Macau