Prefácio
Desde 2007, o Museu de Arte de Macau, tutelado pelo Instituto Cultural, tem organizado a participação de artistas de Macau em La Biennale di Venezia, um prestigiado evento artístico internacional no qual dezoito artistas locais tiveram já oportunidade de apresentar o seu trabalho. Naturalmente, a pandemia veio colocar desafios à participação em exposições internacionais. Contudo, graças à cooperação dos artistas Ung Vai Meng e Chan Hin Io – membros do grupo “YiiMa”–, do curador João Miguel Barros, assim como dos membros da equipa do Museu de Arte de Macau, a exposição foi apresentada em Veneza e mereceu aplauso geral.
Um total de onze conjunto/peças foi mostrado no pavilhão “Macau, China”, incluindo documentação de performances, fotografia, vídeo e escultura. O tema e título da exposição, Alegoria dos Sonhos, referencia o tema da própria Biennale di Venezia, “O Leite dos Sonhos”. Reconstruindo a imagem da comunidade através do prisma da imaginação, os artistas do grupo “YiiMa” criam obras que demonstram um forte afecto por Macau e apresentam as suas características próprias sem paternalismo ou falsa modéstia, num diálogo franco com o público global naquele palco artístico internacional.
Plenas de drama e tensão visual, estas imagens de grande dimensão relembram as magníficas cúpulas barrocas, assim como me fazem pensar em secções de tecido vistas ao microscópio, orifícios numa porta, ou mesmo bolas de cristal, revelando as linhas difusas entre o trivial, o nobre e o sagrado, constituindo uma súmula do passado, presente e futuro. O vasto leque de objectos e vestígios do quotidiano surge como uma juxtaposição de “camadas culturais”, cuja densidade de pormenor cria infinitos ângulos de visão, transformando os visitantes em observadores em vez de espectadores e conduzindo a um repensar da natureza polissémica das imagens e da complexa experiência visual gerada pelo rápido desenvolvimento de Macau nos últimos anos.
O conceito de “documentação de performances” proposto pelo grupo“YiiMa” exige ainda aprofundamento, mas o projecto artístico de preservar o presente através da performance é claramente operativo e virado para o futuro. Mais do que um retrato cândido da vida em Macau, estes cenários familiares (Kit Yee Tong, Mei Heng Cheong e o escritório de Iao Hon), assemelham-se a reconstrucções de identidade, contexto cultural e hierarquização social através de um parcimonioso ajuste e reapresentação artística.
Num gesto raro, os dois artistas do grupo “YiiMa”, que parecem pairar sobre as obras, não consomem, examinam, dissecam ou definem abruptamente os antigos bairros naquilo que seria uma típica sobranceria artística, parecendo, ao invés, tentar atrair a atenção numa abordagem cuidadosamente humanista. Nestas peças, os “YiiMa” (“gémeos”, em cantonês) são simbolizados ou transformados em anjos que se infiltram nas casas das pessoas comuns, ou que se disfarçam de opulentos imperadores repletos de infinitos desejos. Assim, os artistas não são apenas o tema dos desenhos, mas também o próprio objecto a ser visto. Projectados na imagem de imperadores e anjos da guarda de Iao Hon, os “YiiMa” fazem realçar a suposta ambiguidade entre mestre/ residente e transeunte. Através de intervenções físicas, os artistas tornam possível “empoderar” aquele lugar e quebrar com os estereótipos da falta de energia dos antigos bairros de modo a que os residentes possam redescobrir a poderosa, magnífica e extraordinária vitalidade e potencial destes pequenos, escondidos e tranquilos recantos e espaços quotidianos nas zonas mais antigas da cidade.
Tal como o crítico de arte John Berger afirma em Modos de Ver, “Nunca olhamos para uma só coisa; estamos sempre a olhar para a relação entre as coisas e nós próprios”. Os trabalhos dos “YiiMa” permitem aos públicos internacionais descortinar a espantosa beleza secular de Macau, permitindo também que os cidadãos locais examinem a sua relação simbiótica com o que os rodeia. Com estas obras inspiradas pela trivialidade dos bairros de Macau, agora mostrados nesta famosa exposição internacional, o público tem a possibilidade de compreender profundamente o actual desenvolvimento global da arte local, alargando os seus horizontes culturais e orgulhando-se das verdadeiras cores de Macau – uma cidade onde as culturas chinesa e ocidental co-existem há muito com simplicidade e grandiosidade.
O sucesso da exposição Alegoria dos Sonhos demonstra que não é irrealista pensar na internacionalização de Macau. E, apesar de tal empresa ser plena de desafios, uma viagem de mil quilómetros começa sempre com o primeiro passo. Baseado em Macau, mas com uma visão internacional, o Museu de Arte de Macau continuará a promover a criação de arte local, trabalhando em conjunto com os artistas de Macau na prossecução desse sonho.
Un Sio San
Directora do Museu de Arte de Macau